Uma versão dos finais do século XIX
«Vós que amais as peregrinas
histórias dos duendes e lobisomens que uma boa velhota, pelo serão das longas
noites de inverno, conta para afugentar o sono. Ou vós que, achacados a
devaneios, gostais de sonhar acordados e flanar a imaginação pelo mundo dos
sonhos e das quimeras, fantasiando heróis de lança em punho, matadores de
monstros; ou vós, mais práticos e positivos, que tendes por passatempo e regalo
mergulhar o espirito em o nevoeiro dos mitos e das lendas, para, depois de
reduzido o maravilhoso às proporções naturais, poderdes descobrir, qual
historiador, a origem de um povo; vós – digo, para quem for de prazer e gosto
semelhante género de impressões – vinde ouvir a lenda que corre em Ribeiros, do
homem que matou a Bicha-fera e as suas sete filhas e também o caso do grande
milagre de Nossa Senhora Santa Maria de Ribeiros, que na freguesia deste nome
por esta ocasião aconteceu.
É uma história que não foi
inventada: vazada nos moldes dos velhos contos populares, tão sabida e verídica
como passa na freguesia, ela aí vai, tal como em tempos de criança a ouvi
contar a um lavrador ribeirense, por sinal havido por astrólogo e mui sabedor
de grandes coisas.
Em tempos muito remotos
(ainda a mourisma cá não tinha vindo!) esta freguesia que tão povoada e
cultivada é agora, era então uma grande mata de árvores como gigantes, e tão
velhas como o mundo. Cheia de silvados, ribeirais e precipícios medonhos,
alumiados aqui e ali por algum raio de sol que ao pino do meio dia a custo
rompia o arvoredo, era habitada só por aguias e corvos negros, por bichos bravos
e animais ferozes, que urravam e bramiam e enchiam as gentes de terror.
E ninguém havia que, de
medo, se atrevesse a passar lá por perto.
Mas um cristão, um guerreiro
que tinha combatido muito contra os hereges, andava peregrinando de terra em
terra à procura de um lugar ermo e agreste para aí passar a vida em penitência.
O acaso ou (o que é mais certo) a Providencia trouxe-o a estes sítios que achou
acomodados ao seu intento, e assentou morada no lugar que hoje chamam do Paço.
Muito devoto de Nossa Senhora
construiu aí, por suas mãos, uma pequena ermida, a que deu a invocação de Santa
Maria de Ribeiros, que muito venerava. Aí vivia entregue à penitencia durante a
noite, e os dias passava-os na santa ocupação de arrotear terrenos, pastorear
gados, e dizimar os animais daninhos.
De entre estes, o mais
temido era uma cobra muito grande – uma serpente! – que um vigário antigo dizia
chamar-se Bicha-fera.
Tinha ela o antro no sítio
em que agora é a igreja, e quando saia (o que acontecia sempre por entre o lusco-fusco)
dava um assobio tão grande e terrível que estarrecia tudo: as aves,
espavoridas, levantavam logo voo, os animais bravios recolhiam às cavernas, e
ao longe os homens ficavam tolhidos de susto.
Porque ela, como um monstro,
era grande e disforme, e as cabeças de gado que lhe passassem perto, como
carneiros, porcos, touros, devorava-as em menos de um credo, com uma destreza e
força nunca vistas.
Então o santo homem, tocado
por Deus, resolveu matar a Bicha-fera: jejuou a pão e agua trinta dias consecutivos,
confessou-se, e, depois de preparado para a morte e firme na fé de que de Deus
lhe viria a força, vestiu a armadura de ferro, pegou no alfange, e, ao
empardecer da tarde, foi esperá-la.
Vinha ela de cabeça no ar
arrastando pesadamente o corpo, que era do comprimento das mais altas traves, e
deitava pela boca fora baforadas de um fumo negro, que ao longe se desfazia em
largo e escuro nevoeiro.
Mal se avistaram, a
Bicha-fera arremete para ele, e crava-lhe os dentes no ferro da armadura que
lhe cobria o corpo: o ferro range, estala, quebra, faz-se em astilhas, enquanto
ele fere, rasga, corta, abrindo-lhe fundas feridas. E sem perder o sangue frio,
no momento em que ela retirava a boca e a reabria para agarrar com mais força,
enterrou-lhe pela imensa goela a baixo alfange e braço inteiros.
O monstro, soltando um
rugido cavo e profundo, caia ensopado num rio de sangue infecto.
Senhor do campo e da
Victória se julgava já o santo homem quando de repente ouviu silvos
estridentes, que pareciam sair das profundezas da terra; não sabendo o que era,
todo receoso, disse de si para consigo: Santíssima Virgem Maria, aquilo parece
coisa de Belzebu…
Dizendo isto, benzeu-se,
persignou-se, e passou a fazer o credo em cruz quando parado ficou na reza ao
ver, numa carreira desabalada e já muito perto de si, as sete filhas da
Bicha-fera, que vinham vingar a morte da mãe, que corriam velozes como o raio
ao grito de dor que a mãe soltara no derradeiro alento.
Tinha já caído a noite, e
ele, a quem nunca falecera o ânimo, viu-se então atónito e perdido: sentiu pelo
corpo grandes arrepios, os cabelos em pé, e nas veias o sangue gelou de pavor.
Mas lembrando-se de recorrer
ao auxílio divino, voltou-se para a ermidinha, e disse em voz trémula, mas com
toda a fé da sua alma: Senhora Santa Maria de Ribeiros, valei-me!
Palavras não eram ditas
desprendeu-se do céu uma estrela tão reluzente como a estrela da manhã, e vem
lá das alturas coim a rapidez da flecha cortando os ares e deixando um rasto
luminoso pousar em frente do campo do combate, mesmo sobre o penedo que está ao
canto do adro, ao lado da torre da igreja.
E à vista da claridade que
espalhava a estrela as filhas da Bicha-fera ficaram suspensas, olhando como que
encantadas para aquela estranha luz que parecia fascina-las, e que as tornara
imoveis e alheias a quanto se passava em volta.
E neste meio tempo o homem
de Deus, reanimando-se com a súbita aparição da estrela e o seu braço cobrando
vigor, esquartejou-as, uma a uma, sem que elas fizessem outro movimento além de
um ligeiro estremecimento a cada cutilada que lhes descarregava.
Depois, daí a um nada, após
a matança, para agradecer a Deus a victória que acabava de obter por
intercepção de sua mãe, a Virgem Maria, ajoelhou e orou.
A sua oração foi ouvida,
porque, ao terminá-la, a estrela, subindo aos ares, foi ondulando pelo espaço
até desaparecer à sua vista, distinguindo-se daí a pouco, nas lufadas do vento, os sons de uma música
desconhecida, que eram sem dúvida o coro dos anjos que levavam a sua oração aos
pés de Deus.
Passados momentos dirigiu-se
para casa muito impressionado e doente; e daí a três dias, a sua alma,
desprendendo-se do corpo, começou a esvoaçar no espaço, seguindo a estrada do
céu que três dias antes a estrela lhe indicara.
Nesta lenda, que para o comum
dos habitantes da freguesia passa por um facto averiguado, um fundo de verdade
existe, como em todas: o facto nu, simples, racional despido de alucinação
religiosa.
Uma antiga tradição ensina
que o santo homem dispusera, ordenando que o produto dos seus bens fosse
aplicado na construção de uma igreja no sítio em que aconteceu o milagroso
caso, que os seus ossos se guardassem em túmulo, e anualmente se rezasse por
sua alma um responso, para o qual deixara o legado de cinco alqueires de pão
meado.
E como a confirmar a verdade
da tradição, lá se vê ainda, encravado na parede da igreja e junto à porta
lateral norte um tosco túmulo de pedra a servir-lhe de jazigo, que pelo modo
como está disposto e construído mostra ser coevo da fundação da igreja. O mesmo
lugar em que a lenda diz ele vivera e passara o resto dos seus dias
religiosamente ainda cumpre o legado, pagando a referida pensão à igreja, e o
responso é anualmente rezado e satisfeito pelo reverendo pároco no segundo
domingo de Agosto com água benta espargida sobre o túmulo.»
Z.
In: “O Desforço”, Setembro
de 1895